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ARTIGO DE OPINIÃO: "Entre o esquecimento e o futuro, bate o coração do Interior", por Susana Lucas Gato

 

Fotografia de Telmo Martins

Há um país que se insinua para lá das serras, onde os rios correm sem pressa e os campos guardam memórias mais antigas do que nós. É o interior — tantas vezes invocado em discursos, mas esquecido no quotidiano das decisões. Ali vivem pessoas que resistem, que cuidam da terra, que mantêm acesas tradições que nos definem enquanto comunidade. Mas vivem também a solidão do abandono, a falta de oportunidades, o silêncio pesado de quem sente o futuro a passar ao lado.


Não é justo que a dignidade de uma vida plena dependa da proximidade a uma autoestrada ou a uma capital. Não é aceitável pedir a quem ficou que continue a resistir sem lhe dar os meios para o fazer. O interior não é deserto: é um campo fértil à espera de cuidados, um território onde cabem horizontes de esperança, se houver coragem política para os cultivar.


Portugal só será inteiro quando olhar para dentro de si mesmo e reconhecer que, sem o interior, o país perde o coração que o sustenta. O futuro não se constrói apenas em avenidas iluminadas, mas também nos caminhos de pedra que ligam aldeias, nos rostos enrugados que guardam saberes, nos jovens que sonham ficar — se lhes dermos razões para acreditar. O interior esquecido não pede caridade, pede justiça. Pede que o país se lembre de que a coesão não é luxo, mas fundamento de uma democracia viva. E pede, sobretudo, que se devolva esperança às suas gentes, porque sem elas Portugal ficará sempre incompleto.


Há, porém, uma ferida que sangra em silêncio: a da representação política. O interior tem cada vez menos voz na Assembleia da República, como se a geografia tivesse o poder de apagar votos e calar vontades. Cada círculo eleitoral que perde deputados arrasta consigo pedaços de dignidade, deixando milhares de cidadãos a falar mais baixo, como se a sua existência valesse menos. Esta desproporção não é apenas aritmética: é simbólica e profundamente injusta. Um Parlamento que não reflete o país inteiro corre o risco de se tornar refém das suas maiorias urbanas, esquecendo o resto. Uma democracia sólida não pode aceitar que certas terras sejam apenas números residuais numa estatística eleitoral.


Portugal precisa de devolver voz ao interior. Um povo que não é representado não é plenamente livre — e sem liberdade partilhada não há coesão, nem esperança, nem futuro. É aqui que se exige coragem política. Reformar a lei eleitoral para garantir equilíbrio territorial não é um favor, é um dever democrático. Investir em transportes públicos de qualidade, em hospitais que não fiquem a horas de distância, em escolas que mantenham os jovens próximos da sua terra, é mais do que política: é justiça social. Descentralizar não pode ser mera promessa — tem de ganhar corpo em autarquias fortes, regiões com poder real de decisão e recursos que não se esgotem nos gabinetes lisboetas.


O interior tem também um imenso património humano e cultural, tantas vezes subaproveitado, que pode ser motor de desenvolvimento sustentável: do turismo de qualidade à inovação agrícola, da cultura à energia limpa. É preciso transformar o que hoje é visto como vazio em terreno fértil para o futuro.


Portugal não precisa de mais promessas. Precisa de ação. Precisa de líderes que compreendam que um país amputado do seu interior nunca será inteiro. Só quando cada aldeia contar, quando cada voz for ouvida, quando cada cidadão sentir que tem futuro onde nasceu, poderemos dizer que somos um país justo e coeso. Mas a mudança não é só responsabilidade do Estado. Cada um de nós tem um papel a cumprir. Começa nos gestos mais simples: escolher estar presente, valorizar o que é nosso, recusar a indiferença. Podemos trocar a pressa da autoestrada pelo caminho que atravessa aldeias, onde um café é encontro e não apenas consumo. Podemos transformar férias em regresso ao essencial: dormir numa casa de pedra, ouvir os sinos da aldeia, deixar que o silêncio nos ensine pertença. Podemos dar vida ao comércio local, escolher os produtos da terra, conversar com quem os cria — porque em cada pão, em cada queijo, em cada garrafa há uma história que só existe aqui.


Sobretudo, precisamos de criar raízes para o futuro. O interior não pode ser apenas museu vivo ou cenário para turistas: tem de ser lugar de vida para quem cá nasce. É urgente dar aos jovens razões para ficar — empregos ligados à agricultura inovadora, às energias renováveis, ao turismo sustentável, à cultura, à tecnologia. É essencial apoiar quem quer empreender, dar condições a quem sonha criar família, garantir serviços públicos de qualidade para que viver aqui seja escolha natural, não sacrifício. Não se trata de reter jovens por falta de alternativas, mas de oferecer alternativas que os façam querer ficar. Tratar o capital humano não como recurso descartável, mas como a maior riqueza de cada território. Porque cada jovem que parte leva consigo um pedaço de terra; cada jovem que fica pode ser alicerce de um futuro mais justo e equilibrado.


O interior é coração. Portugal só será inteiro quando bater ao mesmo ritmo de todas as suas gentes.

Por Susana Santos Vidigal Lucas Camões Gato

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